Sendo passagem
de milhares de futuros incertos, possibilidades desconhecidas, brigas
eventuais, destinos trágicos e inseguranças, a Estrada sabia de muita coisa
sobre muita gente. Se existe uma ferramenta eficiente para julgamentos
definitivos, era a Estrada. A Estrada fazia parte dos Portais Efetivos, meios
pelos quais o mundo inferior tomava suas prometidas almas e as direcionava para
o lugar onde pertenceriam daquele momento em diante, basicamente por toda a
eternidade. Se você sabe que cometeu algo imperdoável, deve ficar longe dos
Portais, do contrário comprará uma passagem só de ida para o já conhecido
inferno. Acontece que a maioria das pessoas não sabe da existência dos Portais
até passar por um, mas aí já é tarde demais e ninguém fica sabendo de qualquer
forma. Quem nunca cometeu crimes imperdoáveis e passa por um dos Portais percebe
absolutamente nada. Era um sistema eficiente estudado pelos mais importantes
nomes demoníacos, e os créditos da estrutura de cada Portal eram discutidos
fervorosamente até os dias de hoje.
Os Portais
trabalhavam por si mesmos, e todos tinham egos enormes, refletidos de seus
próprios construtores. O pessoal lá embaixo tinha um certo probleminha nesse
aspecto. Hoje contarei uma parte da história de quando o sistema dos Portais
falhou e se abriu para um inocente, o pobre estudante John Spencer.
Era um final de
tarde quente no Arizona, e John havia optado pela rota 66 para voltar ao seu
alojamento naquele dia. Não costumava usar aquela estrada, apesar de nos
últimos anos ela ter voltado a ativa depois de um longo esquecimento causado
pela construção das novas vias de trânsito rápido. O calor o estava deixando
demasiado eufórico, e não parava de repetir mentalmente palavras grotescas
sobre si mesmo por ter esquecido de consertar o ar condicionado do carro. A
procrastinação te pega no final das contas, rindo da sua cara por ter se achado
esperto ontem. Abriu mais a janela, girando aquela manivela que, para completar
o cenário, emperrava constantemente. John imaginava se algum dia passaria por
algum sufoco no qual necessitaria de agilidade e a maldita manivela seria a
culpada. Ou o ar condicionado.
Passaram-se mais
vinte minutos de agonia, suor misturado com frustração pela manivela emperrada.
Se ao menos alguma estação de rádio funcionasse, mas parecia que naquele ponto
naquele momento nada estava funcionando.
A frustração já
havia atingido níveis intergalácticos quando John sentiu o carro afundar tão
rápido e bruscamente que não duvidaria se tivesse deslocado alguma parte do
pescoço. Olhou para trás e viu uma rachadura exageradamente grande na estrada,
se perguntando como não tinha visto aquilo. Prosseguiu, voltando a velocidade
anterior depois de um minuto. Seu pescoço ainda doía quando sentiu outro
solavanco, dessa vez mais forte. Exclamou mais assustado do que irritado,
percebendo depois dos primeiros segundos de choque que parecia ser a única alma
viva em quilômetros. Se o pneu estivesse furado, estava ferrado. Talvez por
causa dos solavancos ou seja lá o motivo, o rádio começou a tocar, tornando
aquele terror sucessivo. John não sabia muito bem como sua mente funcionava no
ápice do desespero, mas aparentemente raciocinava mais rápido do que o normal,
pois reconheceu a música como sendo Lookin’ Out My Back Door do Creedence
Clearwater Revival. A reconheceu antes do rádio começar a travar e a música
tocar como um disco arranhado, repetindo uma palavra de forma enlouquecedora.
Ele praticamente socou o botão de desligar, notando que agora não sentia mais
calor.
Continuou
dirigindo, agora mais cauteloso, com os olhos grudados no chão da estrada a sua
frente. Percebeu mais adiante um estranho risco preto cruzando a estrada, e
quanto mais se aproximava o risco aumentava em largura. Quando atingiu uma
distância suficiente para identificar o que raios era aquilo, parou o veículo no
meio da estrada. Já estava avançando a uma velocidade baixa, portando foi uma
parada suave. Encarou aquela rachadura grossa e bizarra, que se estendia até
onde seus olhos podiam alcançar no deserto ao seu lado. Aquilo era
geograficamente impossível, pensou, porém não sabia de fato se era, mas na sua
mente era, pois nada em sua vida tinha sido mais estranho do que aquilo. Uma
estrada com rachadura daquela gravidade deveria ser interditada, porém John não
passou por nenhum tipo de aviso. O que diabos estava acontecendo?
Desceu do carro
depois de dois minutos de paralisia completa, parando um pouco adiante, com
medo de avançar e ver a profundidade daquilo. Ele já esperava o que ia ver, era
óbvio que aquilo era meio sem fim, uma queda infinita num abismo aleatório no
meio do nada.
“Se eu fosse
você dava meia volta.”
John podia ter
morrido naquele instante, se alguma vez chegou a sentir que era a sua hora,
tinha sido naquele momento. Virou a cabeça na direção da voz, o coração dando
ponta pés violentos em seu peito. Um homem loiro de meia idade usando camisa
xadrez e calças jeans o encarava com os braços cruzados e um sorriso com o
queixo levemente projetado para frente. Aquele cara estava ali o tempo todo?
“Desculpe?”,
conseguiu murmurar John, andando para trás e sentindo seu carro nas suas
costas.
“Vai aumentar, é
melhor dar meia volta.”, e, sem aviso prévio, se abaixou, pegou uma pedra e
jogou na direção da rachadura escura. John não conseguia se decidir se estava
com mais medo da rachadura ou daquele cara.
Preferiu não
responder, se você responde de volta pra essa gente louca eles acham que você
está incentivando e continuam, ouviu a voz de sua avó Betty na cabeça. Deu a
volta no carro e entrou no lugar do motorista.
Quando começou a
dar a ré, notou que o final de tarde já estava para se tornar noite, com o sol
se pondo no horizonte rachado. Fez a meia volta e seguiu pelo caminho de onde
tinha vindo, tentando se concentrar e pensar que caminho faria para passar para
o outro lado daquela maldita estrada. Aquela rachadura era tão longa que
poderia facilmente atingir o estado todo. Ou o mundo.
Dois minutos
refazendo seu caminho e a temperatura caiu bruscamente, obrigando-o a tentar
subir o maldito vidro, mas a maldita manivela continuava emperrada.
Ao voltar sua
atenção para o trânsito inexistente, teve dois segundos de vantagem e
absolutamente tudo ficou escuro. Tudo.
E então John não
viu mais nada.
Esse foi um conto originado da proposta 29 da Oficina de Bolso. Na verdade foge bastante da ideia proposta, mas meu cérebro começou a trabalhar e saiu isso. Na minha cabeça esse conto possui continuação, portanto vamos orar para eu praticar o acabativismo dentro de mim.